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Direitos fundamentais e pandemia V — o STF e o acesso à informação

Muito embora o acesso à informações em poder dos órgãos públicos já tenha ocupado antes a agenda do STF, foi (e tem sido) durante a pandemia da Covid-19 (coronavírus) que grassa em todo o planeta e que levou à decretação do estado de calamidade pública em todo o Brasil que o direito fundamental de acesso à informação foi novamente colocado em evidência e submetido ao crivo de nossa Suprema Corte.

Nesse sentido, destaca-se a decisão monocrática de 26 de março deste ano, referendada pelo Plenário em 30 de abril, prolatada em sede de cautelar na ADI 6351/DF, pelo relator ministro Alexandre de Moraes, que deferiu a liminarmente a medida pleiteada na inicial pelo Conselho Federal da OAB, suspendendo a eficácia do artigo 6º-B da Lei 13.979/2020, incluído pelo artigo 1º da Medida Provisória 928/2020, com o seguinte teor:

“Artigo 6º-B — Serão atendidos prioritariamente os pedidos de acesso à informação, de que trata a Lei nº 12.527, de 2011, relacionados com medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de que trata esta lei.

§1º. Ficarão suspensos os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação nos órgãos ou nas entidades da administração pública cujos servidores estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes e que, necessariamente, dependam de: I — acesso presencial de agentes públicos encarregados da resposta; ou II — agente público ou setor prioritariamente envolvido com as medidas de enfrentamento da situação de emergência de que trata esta lei.

§2º. Os pedidos de acesso à informação pendentes de resposta com fundamento no disposto no §1º deverão ser reiterados no prazo de dez dias, contado da data em que for encerrado o prazo de reconhecimento de calamidade pública a que se refere o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

§3º. Não serão conhecidos os recursos interpostos contra negativa de resposta a pedido de informação negados com fundamento no disposto no §1º.

§4º. Durante a vigência desta Lei, o meio legítimo de apresentação de pedido de acesso a informações de que trata o artigo 10 da Lei nº 12.527, de 2011, será exclusivamente o sistema disponível na internet.

§5º. Fica suspenso o atendimento presencial a requerentes relativos aos pedidos de acesso à informação de que trata a Lei nº 12.527, de 2011″.

Note-se, que, além de arguir a inconstitucionalidade formal, o autor da demanda sustentou a ilegitimidade do ponto de vista material, argumentando que a medida provisória questionada estaria violando frontalmente os direitos à informação, à transparência e à publicidade, assim como afrontando o devido processo legal, pelo fato de suspender os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação, impedir o conhecimento de recursos interpostos contra tal negativa, impor ônus excessivo ao cidadão ao exigir a reiteração do pedido quando findo o estado de calamidade pública, e, além disso, por desatender às exigências da proporcionalidade, tendo em conta a existência de meio menos gravoso (aos direitos referidos) previstos na Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011).

Quanto aos fundamentos da decisão, o relator afirmou que “o artigo impugnado pretende TRANSFORMAR A EXCEÇÃO — sigilo de informações — EM REGRA, afastando a plena incidência dos princípios da publicidade e da transparência”, aduzindo que “a publicidade específica de determinada informação somente poderá ser excepcionada quando o interesse público assim determinar. Portanto, salvo situações excepcionais, a Administração Pública tem o dever de absoluta transparência na condução dos negócios públicos, sob pena de desrespeito aos artigos 37, caput e 5º, incisos XXXIII e LXXII, pois como destacado pelo Ministro CELSO DE MELLO, ‘o modelo políticojurídico, plasmado na nova ordem constitucional, rejeita o poder que oculta e o poder que se oculta’ (Pleno, RHD no 22/DF, Red. p/ Acórdão Min. CELSO DE MELLO, DJ, 1-9-95)”.

Quando da confirmação da decisão pelo Plenário, o relator sublinhou o caráter abusivo das alterações propostas pela medida provisória e destacou a particular relevância (e mesmo prioridade absoluta) dos deveres constitucionais de publicidade e transparência durante a pandemia, dada a autorização concedida aos gestores públicos no sentido de dispensar licitações, devendo ser assegurado a plenitude de acesso às informações públicas pelo corpo social.

Tendo em conta tal decisão, que não foi a única, mas assumiu especial importância por se somar a outros julgados paradigmáticos do STF ainda na fase inicial da pandemia, entendemos que vale a pena resgatar (e mesmo reproduzir em parte) matéria já versada há mais de dois anos neste espaço privilegiado, tecendo algumas considerações sobre o direito fundamental à informação na ordem jurídico-constitucional brasileira.

Antes de avançar, contudo, oportuno recordar que como resultado da democratização das relações de poder é possível identificar a existência de um “direito humano ao saber” resultado primeiramente, no plano político das liberdades públicas conquistadas no processo civilizatório. A liberdade de informação e os correlatos direitos à informação e de acesso à informação, além de direitos humanos e fundamentais de alta relevância, representam técnicas democráticas de alta densidade na conformação das relações humanas numa determinada comunidade política e social. Na atualidade é possível reunir tais direitos e os deveres que lhes são inerentes numa disciplina jurídica que acabou por ser denominada Direito da Informação.

O direito à informação (no sentido de direito a ser informado), que inclui o direito de acesso à informação (a prerrogativa de poder acessar informações), não se confunde com a liberdade de informação (o direito de informar), embora tenha com a mesma fortes pontos de contato e corresponda a uma particular dimensão desta última. As três figuras se fazem presentes atualmente nos catálogos de direitos fundamentais das Constituições democráticas e encontram previsão no sistema internacional de reconhecimento dos direitos humanos.

No Direito Constitucional positivo brasileiro, a trajetória não foi distinta, pelo menos não no que diz com a previsão textual de tal direito como direito fundamental com diversas manifestações ao longo do texto da CF. Importa sublinhar, contudo, que o direito à informação foi expressamente contemplado no artigo 5º, em dois momentos distintos, nos incisos XIV e XXXIII. Com efeito, ao passo que no XIV, cujo teor reza que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”, o inciso XXXIII garante que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo de lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

Isso evidencia o fato de que na CF o direito de acesso à informação assume a condição de um direito fundamental autônomo submetido, em parte, a regime jurídico-constitucional próprio, que será objeto de atenção logo mais adiante.

O conteúdo e o alcance (portanto, também os limites) do direito à informação na CF apenas poderão ser devidamente compreendidos mediante uma análise sistemática, que deve levar em conta também sua articulação com outros direitos e princípios fundamentais.

Mas também o foco desta coluna é o direito dos cidadãos de acesso a informações por parte dos órgãos públicos, associado ao dever constitucional do fornecimento de tais informações e do princípio (também impositivos de deveres) de transparência da administração pública. O que aqui está em causa, portanto, não é a liberdade de informar, mas o direito fundamental e dever constitucional do poder público de informar que, na esfera infraconstitucional, foi concretizado e regulamentado em especial mediante a Lei Federal de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011).

Assim, como os direitos fundamentais em geral, também o direito à informação tem uma dupla dimensão objetiva e subjetiva. Ao passo que na sua dimensão objetiva está a se falar de um direito subjetivo de acesso à informação, na perspectiva da sua dimensão objetiva o direito à informação densifica, no plano constitucional e dos direitos fundamentais, um valor essencial de natureza coletiva, porquanto indispensável a um Estado democrático de Direito, para o qual a publicidade e transparência dos atos dos órgãos estatais viabiliza o controle social e uma cidadania ativa e consciente, assim como o papel social da liberdade de informação em geral, igualmente estruturante para a democracia. Ademais disso, cuida-se de direito essencial à garantia do pluralismo político [1].

Ademais disso, também o direito de acesso à informação implica, na perspectiva objetiva, tanto a existência de um dever de proteção estatal e correlatos deveres na seara organizatória e procedimental, traduzindo aqui também a função de um dever de natureza prestacional. Isso significa que o Estado, como garante do direito geral de ser informado e do direito de acesso à informação, deve assegurar um sistema informacional funcional, de modo a que cada cidadão possa efetivamente ter condições de se informar sobre os assuntos essenciais para o Estado democrático [2]. Dito de modo e numa perspectiva constitucionalmente adequada, associada ao dever de publicidade da administração (que se estende aos poderes estatais em geral, no que compatível), é possível sustentar, na CF, a existência de um dever constitucional de gestão transparente da informação [3].

Outrossim, calha sublinhar que o dever constitucional de transparência, publicidade e de informação, além de permitir o controle social, imprescindível a um Estado democrático de Direito, também assegura (ou facilita) a fruição (e proteção) de outros direitos fundamentais (não apenas, mas em especial os direitos de participação política e de crítica), mas também os direitos sociais, pois o acesso a informações atuais, corretas e completas, por exemplo, em matéria orçamentária, permite fiscalizar a destinação de recursos para os fins constitucionalmente previstos, como é o caso dos direitos à saúde e à educação, os quais inclusive têm assegurado investimento mínimo de recursos públicos.

É nessa perspectiva que se pode afirmar que o direito de acesso à informação corresponde a uma das expressões concretas do que Peter Häberle designou de um status activus processualis, ou seja, uma cidadania ativa processual, visto que viabiliza um controle social indispensável a um Estado democrático de Direito e a possibilidade de exercício consciente e informado da liberdade de crítica e participação política.

Que o direito de acesso à informação, tal como os direitos fundamentais em geral, também é submetido a limites e restrições resulta elementar, como é o caso, na CF, da salvaguarda do sigilo profissional (artigo 5º, XIV, CF), da garantia de sigilo imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (artigo 5º, XXXIII, CF), bem como a possibilidade de restrições excepcionais por força do estado de sítio (artigo 139, III, CF), nesse caso, contudo, pelo legislador ordinário no âmbito de uma reserva legal simples estabelecida no dispositivo constitucional referido.

Além disso, existem restrições veiculadas pela legislação ordinária (como é o caso, entre outros diplomas, da Lei de Acesso à Informação) e mesmo de natureza jurisprudencial que, em geral, devem ser passíveis de recondução a limites constitucionais de natureza implícita, indispensáveis ao estabelecimento de uma concordância prática entre direitos e outros bens constitucionais, o que aqui não cabe desenvolver, mas que pode ser aqui ilustrada mediante o exemplo da decisão do STF sobre a legitimidade constitucional da exigência da publicação nominal dos vencimentos dos servidores públicos.

De todo modo, o que nos importa aqui é, à vista da decisão do STF que ensejou a redação do presente texto, bem como da apresentação dos principais contornos do direito fundamental de acesso à informação consagrado na CF, enfatizar a posição preferencial que tal direito (assim como se dá com a liberdade de expressão e de informação) ocupa num Estado democrático de Direito, posição que não pode ser fragilizada (aliás, muito antes pelo contrário), nem mesmo em tempos de crise.

Todavia, a despeito da importância de se ter instituições vigilantes e dispostas a fazer valer tal direito, para que a liberdade e o direito de acesso à informação seja o farol que ilumina e assegura a transparência das ações estatais, indispensável uma crescente participação da sociedade civil, no sentido de uma cidadania proativa. Sem a pressão e mobilização constantes da sociedade civil, as disposições normativas que asseguram ampla informação podem converter-se em “letra morta”, e os princípios que as motivam podem ser suplantados por interesses menos democráticos.

FONTE: Conjur

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